Você vai me responder: imagina, não jogo nada fora. Toda vez que arrumo meu armário separo o que não uso para doação. Ok, isso mesmo. Enchemos sacolas e mais sacolas, entregamos à alguma igreja ou instituição e ficamos com a consciência tranquila tendo a certeza que estamos fazendo o bem. Longe de mim dizer que doar o que temos sobrando para quem precisa seja um ato ruim. Não é mesmo. Mas saiba que, algum dia, mesmo as roupas doadas vão para o lixo. E aí?
Segundo dados do Copenhagen Fashion Summit, o maior evento sobre moda e sustentabilidade que existe, 92 milhões de toneladas de descarte têxtil foram produzidas em 2015 no mundo. Só no Brasil são cerca de 170 mil toneladas de resíduos por ano. Um número realmente impressionante. Nas confecções do Brás e do Bom Retiro, em São Paulo, por exemplo, todos os dias são geradas 20 toneladas de retalhos de tecido, material que é colocado nas calçadas e recolhido por caminhões junto com o lixo comum. Esta é a realidade: boa parte dos resíduos têxteis vai parar no lixão ou no aterro, podendo levar centenas de anos se decompondo e ainda liberam gases e substâncias tóxicas no solo e nas águas subterrâneas.
Reciclagem não é a solução
Você pode estar se perguntando: mas porque não se recicla esse lixo? A reciclagem de resíduos têxteis até existe, mas quase não acontece por aqui, já que é um processo muito complexo. Para que volte a ser fio novamente, esse material deve ser separado por matéria-prima e comprimento de fibra. Sem contar que o estado em que os tecidos geralmente se encontram após serem descartados acabam inviabilizando comercialmente a reciclagem.
Vale destacar que o problema do resíduo está longe de ser apenas as roupas que não usamos mais. Se por um lado o fim da vida útil de uma peça ajuda a engordar as pilhas de lixo têxtil, o maior ofensor está mesmo no início do ciclo. A moda é uma indústria de desperdícios. Mesmo com processos de modelagem inteligentes, no geral, cerca de 20% a 30% do tecido é descartado na etapa de corte de uma peça. E nem mesmo as roupas depois de prontas escapam desse cenário. A produção excessiva – estimulada pela indústria da moda
onde tudo é tendência, que nasce e morre na velocidade da luz – faz com que as roupas fiquem paradas em estoques, mesmo depois de serem ofertadas em infinitas liquidações ou passarem por outlets.
E saiba que, pasmem, as grifes de luxo incineram as peças pois afinal, como vender aquela bolsinha cara pela metade do preço? Essas marcas se posicionam pelos seus produtos de luxo e exclusivos. Elas não querem suas peças circulando em mãos – literalmente – erradas. Ou seja, não importa muito se vêm das fast fashions ou das grifes. Os excessos têm o mesmo destino: o lixo.
O que podemos fazer?
A resposta mais apropriada seria: para de comprar. Parece radical? Sim, mas essa provocação, na verdade, é para que a gente pense e repense os nossos hábitos de consumo. Vivemos num mundo em que somos bombardeados diariamente com mensagens dizendo que precisamos sempre de mais, que a moda mudou, que o trend do momento é isso e aquilo. Que o que serviu no verão, está démodé a partir de agora. E, sem pensar muito, vamos acreditando nesse discurso, deixando a vida nos levar. No livro “Moda e sustentabilidade, design para a mudança”, as autoras levantam uma questão que reforça essa realidade: “90% das roupas são jogadas fora antes do fim da sua vida útil”. Elas destacam ainda que “com frequência, na indústria da moda, um produto descartado não é um indicador de baixa qualidade, mas de uma relação fracassada entre o produto e o usuário”. Isso significa que, antes mesmo de estragar, descartamos (lê-se doamos, vendemos ou qualquer outro fim) nossas roupas porque elas deixam de nos representar. Ou melhor dizendo: deixam de representar quem o mundo disse que deveríamos ser.
“90% das roupas são jogadas fora antes do fim da sua vida útil” Livro: Moda e sustentabilidade, design para a mudança
É por isso que culpar o sistema que produz aceleradamente e descarta seus excessos sem se preocupar com as consequências é pouco maduro da nossa parte. Afinal, a roda gira dessa forma porque aceitamos que assim seja. Estamos em alguma parte desse ciclo. Me incluo, viu! Abro um parênteses aqui para dizer que, enquanto escrevo este artigo, sinto um vazio enorme e uma vontade, cada vez maior, de mudar. Mas, como já disse algumas vezes, é um processo. Passo a passo. Fecho parênteses.
Logo, somos responsáveis, seja na hora da compra ou do descarte, por cada roupa que colocamos aqui, no nosso planeta. Nós e todo mundo que, de alguma forma, faz parte do sistema. O assunto é tão serio que virou lei. Segundo a Política Nacional dos Resíduos Sólidos (PNRS), existe uma coisa chamada responsabilidade compartilhada. Isto é, tanto o consumidor quanto os fabricantes, importadores e todos os envolvidos na cadeia produtiva têm responsabilidade legal de encaminhar de forma correta os produtos. Não é o que acontece na maioria dos casos, infelizmente. Mas veremos mais abaixo com podemos ser agentes da mudança.
Mudar nossa relação com o consumo
Até aqui falamos dos números assustadores, do cenário nada favorável para a reciclagem, da indústria da moda que anda na contramão e da nossa (boa) parcela de culpa nisso tudo. Mas como resolver o que já está no mundo? O que eu já comprei e está no meu armário pode e deve ter um destino melhor.
- Faça durar
Cuide das suas roupas. Obedeça as orientações para lavar e passar. Trate com carinho, mesmo as peças mais baratas. Se descosturar, conserte. Outra maneira de fazer durar é não descartar suas roupas de acordo com as tendências de moda. Para isso, experimente comprar o que faça sentido para você, para o seu estilo. A bota branca de hoje que todo mundo está usando pode ser o seu lixo de amanhã.
- Venda
As peças que por algum motivo você não quer mais podem fazer a alegria de outras pessoas. Brechós, guarda-roupas compartilhados ou lojinhas virtuais são excelentes opções. Assim você estimula este mercado fazendo com que mais pessoas comprem o que já existe. De alguma forma, isso ajuda a desacelerar a produção de novos produtos.
- Doação
É a primeira coisa que vem à mente quando a gente pensa em descarte, certo? Mas doar roupas não pode ser um ato de se livrar “do problema”. Roupa de doação tem que ter a mesma dignidade que as roupas que a gente usa. Ao repassar peças rasgadas ou que precisem de algum reparo você pode estar só mudando o problema de endereço. Pense no estado das peças e para quem você está doando.
No livro “Moda ética para um futuro sustentável”, Elena Salcedo, lembra que na Europa, quase metade das roupas doadas pelo sistema de coleta da Roba Amiga vão parar em mercados de países da Ásia e da África, impactando social e economicamente, já que “destrói a identidade local de diversos países, uniformizando a população e afeta a indústria local”. E acrescentam: “a cultura de doação não se vê acompanhada por uma cultura de reutilização. Doamos, mas muitas vezes, não compramos roupas usadas”. É ou não é?
“a cultura de doação não se vê acompanhada por uma cultura de reutilização. Doamos, mas muitas vezes, não compramos roupas usadas”. Livro: Moda ética para um futuro sustentável.
- Encaminhar
Veja bem, não é descartar. O lixo produzido por todos nós deveria ser encaminhado e não descartado. Tem um TED que elucida este questão e vale a pena assistir.
As peças que não servem para venda ou doação têm destino pouco claro. Se jogar no lixo está fora de questão, o que fazer para encaminhar esses resíduos?
O ideal é procurar a marca produtora daquela peça para saber se ela possui uma logística reversa instituída na empresa. É raro, mas existe. A Puket, Havaianas e Mac recebem nas lojas os produtos que não usamos mais para serem reciclados.
Outra possibilidade é o Ponto De Entrega Voluntária (PEV) ou, em São Paulo, EcoPonto – Estação de Entrega Voluntária de Inservíveis. A partir dai, a prefeitura local será responsável por dar o destino correto a esse produto.
Descobri também o Ecycle , uma ferramenta de coleta. Você diz seu CEP, o que quer descartar e ele te indica postos de coleta.
Existe ainda a possibilidade de upcycling (processo de transformar materiais descartados em produtos novos de melhor qualidade ou melhor valor ambiental) ou downcycling (conversão de materiais e produtos em novos materiais de qualidade inferior).
Tudo isso nos faz voltar ao ponto essencial: repensar os nossas necessidades de consumo e, quando comprar, optar por marcas mais conscientes. Depois disso, cuidar das peças com atenção e carinho é essencial. Por fim, lembre-se sempre que fazer o produto desaparecer de vista, não vai faze-lo desaparecer do planeta.